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Litigância predatória: a estranha história de uma microempresa que tem 303 ações trabalhistas

Litigância predatória: a estranha história de uma microempresa que tem 303 ações trabalhistas

Duas sentenças dadas por varas do Trabalho de São Paulo em outubro indicam litigância predatória e podem apontar para um foco envolvendo pelo menos 303 outros processos protocolados este ano. Em 11 de outubro, a juíza Ana Paula Pavanelli Corazza Cherbino da 14ª Vara do Trabalho de São Paulo julgou improcedente reclamação movida por um suposto trabalhador da empresa PFA Telecom LTDA, microempresa alegadamente terceirizada de companhias maiores no setor de telecomunicações — no caso, Telemont Engenharia de Telecomunicações S/A, Telefonica Brasil S/A e Tim Celular S/A. A magistrada também observou diversas inconsistências nas alegações do reclamante, e indicou a prática de litigância de má-fé. Seis dias depois, a juíza Talita Luci Mendes Falcão, da 84ª Vara do Trabalho de São Paulo também teve o mesmo entendimento em um processo muito semelhante, envolvendo as mesmas empresas.

Ambos os processos pleiteavam o pagamento de diversas verbas trabalhistas, como rescisórias, férias, adicional de periculosidade, além de vale-refeição, pagamento de horas extras e trabalho aos domingos e feriados, além da responsabilização subsidiária das reclamadas. O valor da causa julgada na 14ª Vara era de R$ 318.246,55, enquanto, no outro processo, era de R$ 206.073,96.

Na decisão de 11 de outubro, a magistrada notou que o vínculo de emprego entre o autor e a PFA Telecom foi cadastrado anos depois no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) e sem recolhimentos previdenciários, e a empresa nunca teve empregados registrados no Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged). Além disso, a decisão também destacou que o endereço fornecido pela empresa era um coworking, o que tornava “indiscutível que até mesmo a revelia e seus efeitos já eram esperados.”

Durante a audiência, na qual a PFA Telecom não compareceu, o próprio autor contradisse sua petição inicial ao afirmar que “todo o seu salário era recebido em holerite”, negando uma alegação de pagamento extraoficial anterior. A juíza observou ainda que a testemunha do reclamante fez afirmações que divergiam quanto ao local e a natureza dos serviços prestados.

A situação do registro posterior se repetiu no processo julgado em 17 de outubro, assim como a ausência da PFA na audiência. O reclamante alegava ter sido dispensado sem justa causa em novembro de 2023, mas as consultas feitas pela Justiça ao Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) e ao E-Social revelaram um registro extemporâneo, realizado apenas em maio de 2024, após a suposta rescisão do contrato. As contradições também foram reincidentes. Em audiência, o reclamante afirmou que possuía registro na sua carteira de trabalho física, mas, após consulta aos sistemas e solicitação da cópia dessa carteira, ele informou que não possuía o documento.

A juíza Talita Luci Mendes Falcão concluiu que a reclamação fazia parte de um esquema fraudulento para obter vantagens financeiras indevidas, visto que pelo menos outros 65 processos semelhantes foram movidos pelo mesmo advogado, Jackson Martins Costa, segundo ela. Para a juíza, o reclamante e outros autores utilizavam a revelia da primeira reclamada como estratégia para obter a condenação das demais, que têm maior capacidade financeira. “Não há como afirmar, sem a devida investigação, a dimensão desta fraude, quantos ou quem são os reais envolvidos, os respectivos benefícios obtidos e o volume de recursos dispensados pela União”, escreveu a magistrada.

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Casos de litigância predatória envolvendo terceirização, com o padrão de o primeiro reclamado ser declarado revel e o pedido de responsabilidade subsidiária de outra empresa “sólida” são “típicos” na Justiça do Trabalho, segundo Thomaz Werneck, juiz do TRT2. “A segunda reclamada tem dificuldade de produzir provas sobre os fatos principais da causa. Isso enseja a necessidade de cautela do tomador de serviços, com retenção de documentos para produzir provas e se defender nessas situações”, diz o magistrado.

“O que vemos agora é uma inovação no modus operandi”, diz Tereza Cristina Oliveira Ribeiro, sócia do escritório Lee, Brock e Camargo Advogados. A primeira novidade é o uso não de falsificação simples de contrato de trabalho, mas de registro extemporâneo, o que pode indicar que alguém, supostamente da PFA Telecom, o fez depois do alegado período de trabalho. O segundo é que as companhias envolvidas afirmam, nos processos, que nunca tiveram nenhum contrato firmado com a PFA Telecom, nem que ela tenha prestado serviços para algum de seus parceiros. “A situação remete a uma possível prática predatória ampla e mais elaborada”, diz Rodrigo Freitas, sócio do escritório GM Advogados e Volia Bomfim, que representa a TIM nesses casos. Depois das sentenças de litigância de má-fé, houve pedidos de desistência em cerca de 80 casos semelhantes envolvendo a PFA.

Microempresa

Segundo dados da Junta Comercial de São Paulo, a PFA Telecom foi constituída em 2020 como uma empresa limitada unipessoal, um tipo de pessoa jurídica em que as dívidas não atingem os bens pessoais do empreendedor, não há limite de faturamento ou limite de contratação de funcionários. A empresa funcionou sob esse registro até agosto de 2022, e sob o endereço de um coworking na Faria Lima, centro financeiro de São Paulo, mencionado na sentença sobre litigância de má-fé.

A partir da data, a empresa também mudou de forma jurídica para microempresa individual (ME), sob o nome do sócio Paulo Cesar Amorim Pereira. Com essa transformação e por ser uma empresa de serviços, ela poderia ter até 9 funcionários, e faturamento anual de até R$ 360 mil. Nesse caso, o empresário responde com seu patrimônio pessoal em caso de dívidas da empresa. Além disso, a PFA também mudou de endereço, para um apartamento em prédio residencial no Jardim Nove de Julho, na zona Leste de São Paulo.

A reportagem tentou contato com a PFA e Paulo Cesar Amorim Pereira por email, telefone e redes sociais, sem resposta. O espaço segue aberto para posicionamento.

Quem processa

Outro ponto que chama atenção é a pulverização de advogados envolvidos no caso. Tipicamente, a litigância predatória se caracteriza pelo ajuizamento de ações em massa, por um mesmo profissional, com petições muito semelhantes. No entanto, os processos contra a PFA foram protocolados por pelo menos quatro profissionais diferentes. Atualmente, Jackson Martins Costa é advogado da parte autora em pelo menos 51 ações contra a PFA identificadas pelo JOTA. O advogado Alexandre Almendros, um dos oficiados por litigância de má-fé, junto com Martins Costa, toca pelo menos outras 3 ações contra a PFA, segundo levantamento da reportagem.

A reportagem tentou contato com Jackson Martins Costa por telefone e email, mas não houve retorno. O escritório no qual Alexandre Almendros é sócio chegou a responder uma mensagem via Whatsapp, mas não retornou ligações subsequentes.

A distribuição de ações, por si só, não necessariamente significa nenhuma irregularidade, já que muitos advogados se especializam em certos segmentos, diz Tereza, do Lee, Brock e Camargo. Mas o timing de ajuizamento e renúncias podem indicar uma ação coordenada.

Outro escritório, o Argenton e Queiroz, que ajuizou 39 ações contra a PFA — nenhuma das quais apontadas como litigância predatória —, afirmou via WhatsApp que “cada processo tem o seu DNA próprio” e que não poderia dar entrevistas “pois o Código de Ética da OAB proíbe”. O Código de Ética da Ordem Brasileira dos Advogados, no artigo 32, afirma que o advogado pode ter participações em veículos de imprensa que tenham “objetivos exclusivamente ilustrativos, educacionais e instrutivos, sem propósito de promoção pessoal ou profissional, vedados pronunciamentos sobre métodos de trabalho usados por seus colegas de profissão”.

Em pelo menos seis processos identificados pelo JOTA, os reclamantes não compareceram às audiências, o que resultou no arquivamento da reclamação. A reportagem entrou em contato com 12 reclamantes em processos envolvendo a PFA e empresas como Telefonica, TIM e Claro, além de outras prestadoras como a Telemont. Apenas dois, Olavo de Melo Arêas e Ricardo Canhette Gaylor, responderam, ambos confirmando que haviam entrado na Justiça contra as companhias. No entanto, se recusaram a dar mais informações sobre sua relação com a PFA ou com seus advogados. “Não tenho embasamento nem conhecimento específico para falar sobre esse assunto”, disse Arêas. “Só falo perante a Justiça”.

Parcialmente procedente

Em 10 de julho, a juíza Emanuela Angélica Carvalho Paupério, da 80ª Vara do Trabalho de São Paulo, julgou parcialmente procedentes os pedidos de três reclamantes. Um deles alegava ter trabalhado como emendador de cabos para a PFA de outubro de 2021 a novembro de 2022. Todos solicitavam verbas rescisórias (saldo de salário, aviso prévio, férias proporcionais, FGTS com multa de 40%), além de horas extras e adicional de periculosidade, e a responsabilização subsidiária da Telemont, Telefonica e TIM.

Novamente, a PFA foi revel e confessa quanto aos fatos, enquanto Telemont, Telefonica e Tim contestaram a responsabilidade, defendendo ilegitimidade passiva e alegando ausência de vínculo direto com o reclamante. Ela deferiu os pedidos de verbas rescisórias, mas indeferiu a responsabilidade subsidiária das outras empresas, afirmando que “não se pode atribuir a responsabilidade subsidiária sem comprovação de que o reclamante prestou serviços exclusivamente para essas empresas”. “Para que se configure a responsabilidade subsidiária, deve ser comprovado que as reclamadas realmente usufruíram dos serviços prestados”, segundo a magistrada.

Em maio, outra sentença trouxe entendimento parecido em outro caso envolvendo a PFA e outras duas empresas, Alpitel Brasil e Claro S.A. O reclamante afirmava ter sido contratado como técnico de rede pela PFA Telecom, mas que não teve sua carteira de trabalho assinada, e solicitava o pagamento de horas extras, rescisão, indenização por danos morais, entre outros direitos trabalhistas. Com a ausência da PFA e as declarações do autor da ação, o juiz Rodrigo de Arraes Queiroz, da 2ª Vara do Trabalho de Carapicuíba, reconheceu o vínculo trabalhista e condenou a PFA ao pagamento de saldo de salário, aviso prévio indenizado, 13º salário e férias proporcionais, além de FGTS com multa de 40%.

No entanto, não foi atendido o pedido de responsabilidade subsidiária da Alpitel e da Claro, já que o próprio depoimento do reclamante enfraqueceu a alegação de que o trabalho era realizado para a Claro S.A., pois ele afirmou não saber se sua atividade beneficiava diretamente essa empresa, segundo a decisão. “O reclamante, todavia, não trouxe aos autos qualquer prova, oral ou documental, que evidencie a prestação de serviços em benefício da segunda e terceira reclamadas”.

Há ainda quem entenda que empresas que terceirizam ou quarteirizam serviços têm, sim, responsabilidade subsidiária em processos envolvendo a PFA – inclusive em segundo grau. Em 22 de outubro, a 12ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, por unanimidade, manteve essa posição em um processo trabalhista contra a PFA, que solicitava pagamento de horas extras e o pagamento integral do intervalo intrajornada, bem como a responsabilidade da Telemont e da Telefonica no caso.

Segundo a decisão, as tomadoras de serviços devem responder subsidiariamente em caso de inadimplemento, conforme estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal no Tema nº 725. Para o relator, o desembargador Benedito Valentini, provas documentais e testemunhais demonstraram que ambas as empresas se beneficiaram da mão de obra do reclamante em um contexto de terceirização. Assim, ambas as empresas respondem pelas obrigações trabalhistas reconhecidas na sentença, caso a PFA Telecom não cumpra com o pagamento.

Em agosto, outra sentença, do juiz Renato Ornellas Baldini, da 33ª Vara do Trabalho de São Paulo, deferiu a um trabalhador que havia sido contratado como emendador de cabos telefônicos verbas como aviso prévio indenizado, salários, férias proporcionais, etc. A segunda reclamada e a terceira reclamada, a Comfica Soluções Integrais de Telecomunicações Ltda e a Telefonica, foram reconhecidas como responsáveis, com base na Súmula 331 do TST.

A súmula explicita, entre outros aspectos das relações de trabalho entre terceirizada e contratante, que “a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral”. Segundo Baldini, na decisão sobre o caso, “o tomador de serviço assume, por consequência, os ônus da má escolha de empresa inidônea financeiramente e da sua omissão quanto ao acompanhamento e fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas”.

A lista de processos em tramitação ou arquivados provisoriamente envolvendo a PFA Telecom LTDA pode ser conferida aqui.

A TIM, que aparece na maioria dos processos com a PFA, foi contatada, e apontou que o advogado Rodrigo Freitas, que representa a empresa nos casos, fala por ela. Em resposta ao JOTA, a Telefonica/Vivo, outra das mais envolvidas nas ações, reforçou o que afirmou perante a Justiça, que nunca contratou, “de forma direta ou indireta, nenhum serviço” da PFA. “A empresa ressalta, ainda, o importante papel do Judiciário ao identificar e combater ações abusivas, que acabam por prejudicar o acesso à Justiça daqueles que, de fato, precisam da garantia judicial de seus direitos”, afirmou, em nota.

Litigância predatória

Com as sentenças apontando possível litigância predatória, as juízas ordenaram expedição de ofício à OAB e ao Ministério Público Federal para apurar a conduta dos envolvidos da demanda. Também foi determinado o envio de ofício à Comissão de Inteligência do TRT2, responsável por acompanhar casos suspeitos. Segundo Thomaz Werneck, há previsão de que “um painel para o monitoramento de demandas possivelmente predatórias, bem como treinamentos, workshops, oficinas, cursos e outros eventos adequados para instruir magistrados e servidores” seja finalizado nos próximos meses.

Em uma pesquisa interna, 56% dos magistrados do TRT2 participantes afirmaram que declararam que a litigância predatória é observada “frequentemente ou muito frequentemente”. “Há sensação de aumento  dos casos, mas provavelmente isso é reflexo do conhecimento e enfrentamento”, diz Werneck. Na Justiça do Trabalho, o ajuizamento de ações tem certa facilidade, pois não há exigência do pagamento de custas no momento da abertura do processo. Em geral, o reclamante só arca com algum tipo de encargo financeiro se perder a ação, total ou parcialmente.

Além disso, aos trabalhadores, caso tenham direito à gratuidade de justiça, a cobrança de honorários de sucumbência fica suspensa por até dois anos, e as custas são dispensadas. Muitos dos que recorrem à Justiça estão desempregados ou recebem salários abaixo do limite necessário para solicitar esse benefício. Assim, grande parte dos processos trabalhistas terminam sem custos para o reclamante, mesmo em caso de derrota, com a obtenção da gratuidade judicial por mais de 98% dos reclamantes da Justiça do Trabalho.

Já para o Judiciário, o congestionamento de processos, inflado por demandas predatórias, custa caro. Segundo relatório do Tesouro Nacional, os casos que tramitaram na Justiça brasileira tiveram um custo de R$ 132 bilhões em 2023. Segundo o estudo, a média de participação dos custos do Judiciário de 53 países é de 0,4% do tesouro nacional, enquanto no Brasil esse valor pula para 1,6%. No final de outubro, o CNJ aprovou um ato normativo com objetivo de coibir práticas predatórias, com recomendações de como magistrados devem proceder nesses casos.

“Em casos de terceirização, o que recomendamos é que as tomadoras de serviço façam monitoramento de determinados comprovantes das prestadoras, de verbas previdenciárias, por exemplo, com certa periodicidade. É realizar o trabalho preventivo para que algo não aconteça amanhã ou depois”, diz Tereza Cristina Oliveira Ribeiro, do Lee, Brock e Camargo Advogados. “Mas infelizmente nada impede que, mesmo sem relação com uma empresa desconhecida, uma companhia seja colocada no polo passivo de uma ação, o que já representa custos”.


Carolina Unzelte – Repórter em São Paulo. Cobre política e Justiça. Antes trabalhou para a correspondência da The Economist e do Financial Times no Brasil

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